REDAÇÃO FEITA PARA O CENTRO DE REABILITAÇÃO “FLOR DE LIZ” –
BARRA DA LAGOA – FOLRIANÓPOLIS. BRASIL.
ABRIL DE 2012
A BARRA DA SAIA DA LAGOA
A Barra da Lagoa
tem uma geografia peculiar. Eu que sou Zimbábue, se caminho muito, acabo
Moçambique.
A barra é
legal. Eu gosto da barra. Começa toda urbanizada e vai se tornando agreste, virando
Moçambique, bicho selvagem de beira de praia. Por isso fico na Barra. Tenho medo
de virar bicho e não voltar nunca mais.
Nessa época
do ano a luz é muito bonita e o fim de tarde na Barra tem todas as cores do
mundo.
O vento é
frio e a água é quentinha. Dá até pra entrar. Não tem muito repuxo. A gente
fica bem onde entrou.
Vem uma onda
perfeitinha, com tubo e tudo. Tem uma placa que diz que é a melhor praia pra
aprender a surfar. Eu pego jacaré. Agora chegou meu morey-boogie, mas ficou muito
frio, daí eu só molho meus pezinhos...
De noite tem
o farol e mais dois faroizinhos piscando. Os pescadores ficam lá no começo do
canal e no fim da linha deles tem uma coisa que brilha. O bicho que eles querem
é atraído pela luz. Por isso que eles tem luz, senão seria sem luz mesmo...
escuro.
Eu gosto do
escuro. Mas é perigoso. Dizem que a gente pode virar bicho no escuro; sem
perceber e quando perceber já é tarde. Porque você já virou bicho e perdeu a
percepção, nem sabe mais que um dia não era bicho.
Mesmo assim,
um dia, eu sai caminhando pro escuro. É assim: tem uns postezinhos [ I I I ],
daqui a pouco tem menos postezinhos [ I__I__I ] e no final tem um postezinho só,
que faz divisa com a escuridão [______I ]. Eu passei do último postezinho!
Fui caminhando
até a minha sombra deixar de existir. Era muito escuro mesmo, pois não tinha
lua e o céu tinha cores de chumbo e um cinza avermelhado de ferrugem. Um céu de
metais.
La no fundo
da praia escura e selvagem do Moçambique, dava pra ver as três Montanhas
Misteriosas. Só o contorno delas no céu de chumbo e elas bem pretas. Dizem que
lá é muito misterioso mesmo e tem bruxa e lobisomem, no mínimo, porque bruxa e
lobisomem já viram com certeza. Mas dizem que tem muita coisa lá que não dá pra
ver. Mas tá lá...
A areia tava
gelada. O mar tava brilhando. E o bosque do outro lado bem quietinho. Era escuro
mas dava pra ver tudo. O céu fechado fazia parecer que era tudo um grande
pavilhão, um cenário; que nem naquele filme que o moço bate de barco no fim do
cenário e ele pensa que o diretor é deus, hehehe. Eu chorei muito nesse filme!
Não sei se
virei bicho. Não cavei buraco, não subi em árvore, não pesquei com a boca
dentro do mar. Mas me deu uma vontade de chorar e andar rápido pra dentro da
escuridão, pra sentir o vento na cara e as lágrimas bem geladas no meu rosto. Eu
corria e chorava e fazia uns barulhos esquisitos. Talvez tenha ficado meio
bicho, meio bruxa, meio lobisomem. Algo que eu não sou. Algo que eu não sei...
Quando parei
um pouco de chorar e fazer aqueles barulhos esquisitos, ouvi um barulho que não
era meu. Nem do vento. Nem do mar... o bosque não tava mais em silêncio... eu
acordei ele. E o bosque dava direto nas Montanhas Misteriosas.
Fiquei com
muito medo e sai correndo desembestado, na direção da luz. Feito a Carol Anne
naquele filme dos espíritos na TV. Tudo culpa da especulação imobiliária que
não teve tempo de tirar os cadáveres do caminho, somente a propaganda; as
lápides.
Aqui na
Barra não sei se tem casa em cima de cemitério, mas tem muita especulação
imobiliária e as ruas terminam em lugar nenhum. Eu nem tô. Já conheço o meu
caminho. Fomos para a luz. Eu e a Carol Anne.
Ela foi com
a família prum motel de beira de estrada. Eu fui sozinha, pro meu resort rehab,
flor rara no alto da montanha vazia, onde a dor ecoa, mas a alegria reverbera.
A Carol Anne
não fugiu do fantasma, o filme teve continuação e ela até já morreu. Eu também
não fugi do meu fantasma, ele dorme debaixo de toda e qualquer cama que eu
durma. Mas eu ainda to viva!
Eu sou
Zuleika Zimbábue,
No Centro de
Reabilitação Flor de Liz.
Nessa sessão
de 30/04/2012, eu tenho 09 anos de idade.